Tantos cuidados ao nascer e tão poucos ao morrer! Hoje em dia ninguém se interroga sobre o direito a sermos devidamente assistidos no momento do nascimento porque todos interiorizámos que é um direito universal. Ou seja, nas sociedades ditas civilizadas, não nos passa pela cabeça que entre todas as mulheres que diariamente chegam aos hospitais para terem filhos, apenas um conjunto de privilegiadas pudesse ter acesso aos cuidados específicos que existem nas maternidades. A ideia é absurda e inconcebível. Também não nos ocorre que estes mesmos hospitais não estejam dotados de equipas médicas especializadas, métodos terapêuticos adequados e todos os instrumentos necessários para acompanhar partos fáceis ou difíceis, assim como nem sequer faz sentido perguntar se existem ambulâncias especiais para transportar bebés para outras unidades no caso de nascerem com problemas, porque temos a certeza que sim. È um direito que nos assiste e não temos uma dúvida sobre isso.
Ora se no início de vida tudo isto é tão natural e tão evidente, porque é que no fim da vida apenas uma ínfima percentagem de pessoas continua a ter acesso aos cuidados paliativos?
A questão torna-se cada dia mais urgente porque as estatísticas sobre o envelhecimento da população revelam uma pirâmide assustadora. Senão vejamos: em 2050, 30% da população vai ser idosa. Ou seja, muitos de nós vamos estar velhos e a precisar de muitos cuidados.
A questão torna-se cada dia mais urgente porque as estatísticas sobre o envelhecimento da população revelam uma pirâmide assustadora. Senão vejamos: em 2050, 30% da população vai ser idosa. Ou seja, muitos de nós vamos estar velhos e a precisar de muitos cuidados.
Se pensarmos que segundo estas mesmas estatísticas apenas 10% das pessoas morrem por morte súbita e 90% morrem devido a doença crónica e complicada, as coisas complicam-se ainda mais.
Passe a redundância, há muito trabalho e muito investimento a fazer desde já para que estes 90% tenham direito a ser bem tratados e cuidados até ao fim. Por outras palavras, há que lançar mãos à obra imediatamente para nós próprios não virmos a ser confrontados com uma realidade insuportável: morrer sem assistência adequada, com dor, em sofrimento e sem qualidade de vida. Eu não quero isso e julgo que ninguém quer!
Entre mil e um números eloquentes que podemos ler nas estatísticas há um outro dado inquietante: 1 em cada 4 pessoas vão ter cancro e destas, 50% vão morrer devido à doença. Nesta lógica vale a pena pensar alto e em conjunto o que queremos fazer relativamente aos cuidados em fim de vida, até porque já não estamos a falar apenas de velhos mas também de crianças, de adolescentes e de adultos no auge da sua vida que por ficarem gravemente doentes precisam destes mesmos cuidados.
Por tudo isto, daqui a pouco alguns de nós, ou dos que estão à nossa volta, vão precisar de cuidados paliativos. Existem muito poucas unidades especializadas nos nossos hospitais e a maior parte dos profissionais de saúde não estão cientificamente preparados para prestar este tipo de cuidados. Importa, por isso, reflectir profundamente sobre o que está em questão e tomar decisões com eficácia e alcance. Acredito que todos os políticos e decisores deste país já estiveram pelo menos uma vez na vida à cabeceira de alguém doente, fosse vítima de doença crónica ou em fase terminal. Neste sentido, acredito que todos sabem o que é estar frágil, dependente, carente, em grande sofrimento físico, emocional ou psicológico, muitas vezes sozinho e quase sempre confrontado com a ideia da sua própria morte. E é porque acredito que os políticos e os decisores são feitos da mesma matéria que eu, e que todos estamos absolutamente conscientes da nossa finitude, que confio que o melhor vai acontecer em breve. Tenho a certeza de que ao longo da próxima semana, em que se celebram mundialmente os cuidados paliativos, vão ser lançadas muitas sementes em terreno muito fértil.
Na sequência do que escrevi no texto anterior e justamente por saber que há muito poucos profissionais rigorosamente preparados para prestar este tipo de assistência em fim de vida, a Associação de Cuidados Paliativos fez o primeiro curso intensivo de voluntários. O curso durou três dias inteiros e eu fui uma das trinta pessoas que se inscreveram para fazer a formação e sermos voluntários à cabeceira dos doentes terminais, tenham eles a idade que tiverem. Não foi uma decisão fácil e sei que será uma missão difícil. Já estive várias vezes à cabeceira de pessoas que me eram muito queridas e tinham a morte anunciada e sei, por experiência própria, que é uma realidade extraordinariamente dolorosa. Não falo apenas de dor física mas também da dor emocional de quem se vê fatalmente condenado a viver uma espécie de count-down que sabe quando começou mas não sabe como e quando vai acabar.
A primeira vez que me aconteceu ter um amigo a morrer no hospital não estava preparada para aceitar a sua morte. Ele também não. Não lhe apetecia nada morrer. Tínhamos os dois 20 anos e ninguém quer morrer aos 20 anos. E, no entanto, sabíamos que ia acontecer. Falámos sobre isso com verdade mas também com enorme dificuldade. Dói imenso a morte, não há volta a dar. Nem vale a pena falar muito disso agora, para não voltar a chorar.
Depois deste meu amigo, que era um grande sonhador e um profundo conhecedor do fundo do mar, voltei a estar anos mais tarde à cabeceira de uma afilhada querida durante meses a fio. Tinha 10 anos e um cancro sem esperança. Aconteceu o milagre e ela sobreviveu a um ano inteiro de hospital, a sucessivas operações, a incontáveis tratamentos e a dores inimagináveis. Hoje tem 20 anos e é uma pessoa ainda mais especial na minha vida. Poucos anos depois voltei aos corredores do hospital para três meses extremamente dolorosos e ainda não curados no meu coração. Também não consigo falar desse tempo e, por isso, abstenho-me de o fazer. Mas posso ainda contar que estive perto de outras pessoas em fase terminal e se o conto não é porque isso diga alguma coisa de mim, ou me faça melhor do que sou, mas porque posso falar de duas realidades distintas: dos doentes que viveram até ao fim com e sem cuidados paliativos. Em dois dos casos que conto, os doentes não tiveram direito a cuidados paliativos mas os outros tiveram e eu posso confirmar o efeito terapêutico transformador, pacificador e consolador que estes cuidados tiveram para os ajudar a viver os últimos tempos de vida. Falo dos que morreram mas também das suas famílias pois os cuidados paliativos envolvem sempre as famílias dos doentes e prolongam-se durante o luto.
Em resumo e porque na próxima semana os Cuidados Paliativos vão estar na ordem do dia, deixo aqui o meu testemunho de proximidade e sublinho que os cuidados em fim de vida se aplicam em todas as idades e, muitas vezes, durante períodos de tempo longos. É bom saber isto porque, como disse no início, nunca sabemos quando seremos nós a precisar.
Quarta-feira, 10 de Outubro de 2007Laurinda Alves
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